O barulho que o cérebro faz: representatividade e neurodivergência
- Keyla Fernandes
- 18 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 19 de fev.
Chidi Anagonye é um personagem da série The Good Place e um dos meus favoritos da vida, pois, apesar de não haver uma discussão explícita sobre neurodivergência na série, me ensinou como a representatividade pode ser benéfica.
Ele é um professor universitário de filosofia que ama o estudo, o conhecimento e os livros. Valoriza muito sua carreira e a vida acadêmica. Extremamente inteligente e profundo conhecedor de sua área, Chidi também é uma boa pessoa: humilde, empático e sempre disposto a ajudar os outros. Com suas aulas de filosofia, ele tenta orientar seus amigos a se tornarem pessoas melhores.

Ainda assim, Chidi não consegue terminar sua tese e sofre com sua mente que nunca para de pensar. O fluxo constante de pensamentos, questionamentos e ponderações o torna incapaz de tomar decisões, até mesmo as mais simples — como escolher o sabor de um bolinho. Ele teme tudo o que está fora de sua zona de conforto e, antes de tomar qualquer atitude, se perde considerando todas as possibilidades e consequências. Além disso, tem dificuldade em dizer “não” às pessoas, receoso de magoá-las, e acaba reprimindo seus próprios sentimentos e se ferrando por isso.
Em determinado momento da série, ao conversar com Eleanor, a protagonista, Chidi diz algo que, sem exagero, mudou algo dentro de mim:
“Sabe o som que um garfo faz no triturador de lixo? É o som que o meu cérebro faz o tempo todo.”

Eu nunca havia me reconhecido tanto em um personagem de ficção quanto nesse momento. Como uma fala tão curta e simples poderia resumir o que eu senti a minha vida inteira?
Durante muito tempo, essa também foi a minha percepção sobre o fluxo caótico de pensamentos na minha mente e sobre as dificuldades de lidar com as demandas normais do cotidiano de uma pessoa adulta. Passei a maior parte da minha vida sem saber que tinha TDAH e, nesse tempo, me senti muito sozinha.
Fui uma criança expansiva, que aprendeu cedo que o melhor era reprimir toda essa ferveção interna para não incomodar os outros. Tal qual Elsa, em Frozen (mais uma personagem com quem me identifiquei profundamente): “Encobrir, não sentir.” Assim, fiz o possível para me passar por uma pessoa neurotípica, e isso foi doloroso e exaustivo. Minha forma de ver o mundo, de me relacionar com as pessoas, de gostar das coisas ou de buscar conforto parecia estranha para quem estava ao meu redor. Não que tenham me feito sentir mal por isso, mas o estranhamento era perceptível.

Tarefas que para os outros pareciam naturais — mesmo que incômodas — eram, para mim, uma verdadeira tortura: trabalhos formais, lidar com burocracias do dia a dia como fazer e renovar documentos, ir ao banco, falar ao telefone, marcar consultas médicas, pagar contas. Aliás, as duas últimas coisas eu esquecia com frequência absurda.
E deixa eu explicar: eu sei que ninguém gosta de resolver burocracias, mas, no meu caso, isso ultrapassava o limite do incômodo e se tornava quase impossível.
Eu não entendia por que meus colegas de universidade conseguiam ler aqueles textos acadêmicos longos e tediosos e discuti-los com facilidade, enquanto eu não. Nem por que eu conseguia devorar livros de ficção em poucos dias, mas não manter o foco em uma página de teoria. Também não compreendia por que ficava obcecada por certas bandas ou filmes, enquanto as outras pessoas pareciam gostar de tudo de forma mais… moderada.
Com isso, veio a sensação de que havia algo de errado comigo, de que eu era o problema. Eu via as pessoas à minha volta vivendo a vida “corretamente”, enquanto eu tropeçava nas tarefas mais simples.
Por mais que eu me esforçasse para agir de maneira “normal”, no fim, sempre ouvia:— Você é esquisita.

Não estou dizendo que sou uma garota rara e diferente. Só que eu não via problema nenhum em expressar as minhas esquisitices, e nem achava que minhas esquisitices eram esquisitices. Descobri que eu era esquisita porque me falaram. Então, se eu era esquisita, quer dizer que os outros não eram — ou, pelo menos, não se viam assim.
Mas não dá para simplesmente se desfazer do que sentimos, de quem somos. E o esforço para camuflar as características da nossa neurodivergência causa danos profundos em todas as áreas da vida.
Eu só fui entender o barulho na minha mente quando, aos 32 anos, recebi o diagnóstico de TDAH e Altas Habilidades.
O que eu achava que era preguiça, falta de inteligência ou chatice nada mais era do que exaustão mental, sobrecarga sensorial, desregulação emocional e hiperfoco.
Por isso sempre me vi como uma forasteira e sempre me conectei com histórias de personagens deslocados, solitários e estranhos. Foi por isso que a fala do Chidi ressoou tão forte dentro de mim. Ela me fez perceber que, talvez, gastar toda a minha energia tentando me encaixar em um padrão neurotípico fosse dar murro em ponta de faca. Talvez eu realmente tivesse uma mente barulhenta, e isso não fosse necessariamente algo ruim — desde que eu aprendesse a lidar com o barulho.
“Mas nossa, Xeile, tudo isso por causa de uma fala numa série da Netflix?”

Não.
Tudo isso por causa de anos de luta contra mim mesma. A fala do Chidi (e a orientação da minha amiga Juliana, que vai ficar para outra história) foi apenas o peteleco que derrubou a primeira peça de uma longa fileira de dominós.
Eu entendo que frases de personagens fictícios ou letras de músicas possam parecer banais para muita gente. Mas para pessoas como eu, elas podem fazer toda a diferença. Porque, ao nos vermos representados em obras de entretenimento e arte, entendemos que, em algum lugar do mundo, há outras pessoas enfrentando os mesmos perrengues — ou algo muito parecido.
E, então, sabemos que não estamos sozinhos.
Nós não estamos sozinhos.

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