A Ascensão
- Keyla Fernandes
- 28 de ago. de 2024
- 14 min de leitura
Conto de Keyla Fernandes.
Sobre o conto.
Essa é um versão atualizada desse conto, que já meio velho (não lembro de quando, exatamente, mas era para uma antologia, mas ele foi rejeitado). Revisei e editei, arrumando umas coisinhas para compartilhar com vocês.
Gostei muito do resultado dessa história, foi muito divertida escrevê-la e espero que se divirtam lendo.

A Ascensão
O Primeiro Sinal
A terra seca se racha, dando à luz um homem.
Sob a carcaça de um cordeiro, seu corpo é coberto por palavras de poder e profecias.
Na mão, carrega uma gaiola dourada onde uma ave branca se debate.
Acima, a sombra escura de grandes asas tapa a luz da lua e das estrelas.
Então ele fala, e sua voz é ouvida nos quatro cantos do mundo.
Fui tola ao pensar que aceitariam tal situação.
Mal tive tempo de arrumar minhas malas antes de meu pai me agarrar pelo braço e me colocar para fora de casa gritando a plenos pulmões que não aceitaria uma filha vagabunda nem um neto bastardo.
Os vizinhos assistiram de suas janelas.
A atenção durou até os gritos cessarem e restar apenas uma garota recolhendo as roupas do chão, em prantos.
Eu não tinha nada, a não ser a vida dentro de mim.
Uma amiga me deu abrigo por uns dias, porém logo a notícia chegou a seus pais, e nenhuma família de bem gostaria de ver a filha envolvida com alguém como eu.
Contudo, tive sorte. Muita sorte.
Fui acolhida pela ex-patroa de minha mãe, dona Matilda. A solitária viúva se compadeceu de mim e da criança em meu ventre e viu em nós a chance de ter com quem dividir seus dias. Diziam as más línguas que ela, desde muito jovem, envolvia-se com coisas diabólicas, trabalhos mágicos perigosos e maldições. As pessoas a temiam e, por isso, acostumara-se a ser sozinha.
Apesar de toda a fofoca, comigo, ela foi generosa. Sua casa era grande e bonita, perfumada por diversas plantas e decorada com móveis antigos, e eu a ajudava a manter tudo em ordem.
Não me importava o que diziam de dona Matilda pelas ruas. Ela me deu um teto, comida e um pouco de dignidade, garantindo que meu filho não nasceria desamparado.
Minha gestação foi tranquila, sem muitos percalços, a não ser pelos constantes pesadelos, especialmente no fim. Quer dizer, hoje sei ter sido o fim. Meu bebê era impaciente e veio ao mundo com um mês de antecedência. Enfim... muitos pesadelos. Em todos eles eu paria meu bebê na praia, mas as ondas o tragavam. Eu tentava ir atrás, e meu sangue fazia todo o oceano se tornar vermelho. A água me rejeitava e me atirava de volta na areia. Então, meu bebê surgia das águas, agora como uma pessoa adulta, coberta com o sangue do oceano, passava por mim e nem sequer notava a minha presença.
Adriano decidiu nascer em uma manhã de junho, quando eu voltava da padaria.
Escolhi esse nome pois, da biblioteca pessoal de dona Matilde, li o livro Memórias de Adriano, e me apaixonei pela história do imperador tão sensível e tão adorado. Ao dar o mesmo nome ao meu filho, acreditava estar lhe presenteando com, ao menos, uma chance de grandeza.
Comecei a sentir dores fortes e sangrar na calçada, a duas quadras de casa.
Tal qual no dia de minha expulsão, as pessoas em volta apenas observaram. Dessa vez eu não tentava juntar minhas roupas do chão. Curvei-me, sangrei e gritei de dor. Entretanto me consideravam uma garota de má fama que havia procurado por isso e agora deveria enfrentar as consequências por si só.
"Na hora de fazer foi bom. Agora que se vire." Era uma expressão a qual eu já estava me acostumando a ouvir. Porém não esperava escutá-la justo naquele momento.
Um sem-teto, conhecido por Chico Doido, foi o único a se compadecer de mim. Chamou a ambulância e me ajudou a sentar em um banco. Ficou comigo até a ajuda chegar e repetia que tudo estava bem enquanto eu lhe apertava a mão a cada contração. Perceber o quanto o homem estava feliz por mim, me acalmou. Um estranho com quem ninguém se importava, inclusive eu. Ninguém é capaz de esquecer tal ação.
Depois daquele dia, procurei-o para agradecer, mas não o vi mais pelas ruas.
Jamais pensei ser capaz de criar e nutrir outro ser humano. Porém, ao segurar pela primeira vez aquela pequena criatura, senti uma nova força brotando em mim. Algo descomunal, capaz de obliterar qualquer dúvida até então.
Dona Matilda sempre esteve ao nosso lado e amava Adriano. Ela morreu dois dias antes do sexto aniversário dele. Por ser muito apegado a sua "vovó", — que nos deixou em casa, mais uma vez me provando a minha sorte — ele sofreu muito.
Éramos apenas nós dois.
No começo foi difícil, contudo, cada dia vendo meu filho crescer, me fazia mais forte, e eu já não tinha medo de nada.
Adriano cresceu saudável, tranquilo e carinhoso. Era o melhor aluno da turma. Uma criança esperta, querida por professores e colegas, e muito apegado a mim. Sempre teve uma presença forte, mesmo quando ainda era um menininho. Seus olhos verdes e lupinos, sempre provocavam minha memória, me fazendo recordar de algo do qual preferiria esquecer, mas do qual eu não poderia escapar. E logo, começou a me perguntar sobre o pai.
Como contar que seu pai era um homem com quem eu havia passado uma noite apenas, e que fora embora antes que eu mesma soubesse da gravidez?
Tive de inventar um acidente de carro ou algo assim, e mentir para ele era como cravar um punhal em meu próprio coração. A verdade é que eu tinha vergonha e não queria que meu filho pensasse mal de mim.
Prometi a mim mesma que essa mentira seria temporária, e quando chegasse a hora, quando ele pudesse entender, contaria tudo.
No entanto, com o tempo, Adriano parou de perguntar. Já não parecia se importar mais com isso e estava muito feliz, contudo, a cada dia ficava mais parecido com o pai: os modos, os traços e até mesmo a voz eram réplicas perfeitas do modelo original, uma sombra do passado sempre pairando sobre minhas lembranças.
De qualquer forma, Adriano era o motivo de meus maiores orgulhos e alegrias. Contra todas as pragas que me foram rogadas dos aposentos das casas das famílias de bem, era um anjo de menino.
Conseguiu uma bolsa em uma das melhores escolas da cidade, se tornou presidente do grêmio estudantil e passava muito tempo se reunindo com o grupo para pensar em atividades que pudessem trazer melhorias para a escola, sua equipe e seus alunos. Tinha muitas responsabilidades já nessa época, e era bastante elogiado por seus traços de forte liderança e diplomacia.
"Um garoto excepcional e maduro para sua idade." Diziam muitos dos professores e a diretora da escola.
Não me surpreendeu nem um pouco quando, mesmo adolescente, começou a interessar-se pela política.
Enquanto os amigos passavam o tempo vendo outros garotos jogando videogame na internet, Adriano estudava, lia notícias, e assistia incansavelmente aos vídeos de um senhor com uma inspiradora história sobre como, de morador de rua, tornou-se um reconhecido cientista social e autor de um dos livros mais vendidos do ano.
Qual não foi a minha surpresa em reconhecer aquele rosto marcado pelo tempo, porém limpo e iluminado?
Chico Doido, agora doutor Francisco Gusmão, tornou-se conhecido no mundo acadêmico e digital com sua história de como a educação e o conhecimento lhe salvaram a vida, e agora dedicava-se a estudar a sociedade para tentar melhorá-la.
O homem havia se tornado famoso entre jovens estudiosos e respeitado por seus colegas intelectuais. Falava de filosofia, artes e política com grande propriedade e de forma acessível. Ressaltava a importância da empatia, da educação e da atitude de se mover no mundo. Possuía uma legião de seguidores e havia criado um movimento de conscientização política entre os mais novos.
Adriano não tinha ideia, mas o homem a quem tanto admirava era o mesmo sem-teto que me ajudou na manhã de seu nascimento. Quando o reconheci e lhe contei, seus olhinhos brilharam e ele me implorou para entrar em contato com Chico.
— Filho, ele é famoso agora. Vai ser muito difícil. — Ponderei.
— Mas mãe, se você contar a história de como eu nasci, tenho certeza que ele vai lembrar.
Para mim, era impossível negar algo para aquele rostinho alegre.
Na mesma tarde escrevi a Chico recordando a manhã na qual ele ajudou uma moça grávida. Disse que o bebê agora tinha dezesseis anos e adorava seus vídeos e gostaria muito de receber uma mensagem sua.
No dia seguinte, recebi a resposta.
Francisco Gusmão estava na cidade e fazia questão de conhecer meu filho.
O Segundo Sinal.
No céu da noite eterna e de estrelas arrastadas, o dragão ruge.
A mulher dourada foge, pois não quer que lhe tome o filho.
No deserto, ele a encontra.
Suas grandes asas a protegem do sol.
A criança não chora em sua presença.
"Do que você tem medo?"
Passamos a tarde tomando café com Chico.
A vida o havia transformado.
Vestia-se bem, falava com clareza e se portava de maneira muito distinta. Contagiava todos os presentes com seu carisma e muitas pessoas vinham falar com ele, pois o reconheciam dos vídeos, entrevistas e por conta de seu livro.
— Vejam só, as voltas que a vida dá — disse Chico, ele insistiu para ser chamado assim, bebericando o chá. — mas deixem-me contar um segredo: — Os olhos azuis, antes apagados pela sujeira, pousaram sobre a face do meu menino. — Na manhã em que sua mãe entrou em trabalho de parto, uma coisinha frágil, não muito mais velha que você, com um barrigão enorme... vou te dizer, foi quando resolvi mudar de vida.
Chico continuou a contar como os poucos minutos ao lado de uma jovem prestes a trazer ao mundo um novo ser, mudaram completamente sua maneira de enxergar a vida. Ele sabia como eu havia sido desamparada por meus pais e ignorada por parentes e amigos. Queria trabalhar por um mundo onde pessoas como ele e eu não precisassem depender da bondade de estranhos e não fossem jogados à margem da sociedade por suas escolhas, enquanto elas não representassem nenhum malefício aos demais.
No meu caso, parir um filho sem a presença de um homem havia me estigmatizado e ao lhe perguntar, com todo o respeito, o que o havia levado a viver nas ruas, ele apenas sorriu dizendo ter sido parte de uma jornada muito maior.
Eu lembrava do nosso primeiro encontro com carinho e, claro, por muitas vezes me martirizei por não ter, ao menos, tentado ajudar Chico quando ainda estava naquela situação, pois de sua parte, não houve hesitação em me amparar em meio ao sangue e ao desespero que precederam a chegada de meu filho.
Os dois conversaram por muito tempo e Chico terminou oferecendo-se para ser um mentor para Adriano, que simplesmente congelou com a proposta. Afirmou que estaria à nossa disposição e daria a ajuda necessária caso ele realmente decidisse se aventurar na área das ciências políticas.
— É tão bom ver um jovem como você querendo seguir esse caminho. O mundo já está cheio de líderes velhos fazendo besteira. — Nós rimos. — É verdade, é verdade! Eles não tem interesse em mudar nada. São como abutres, alimentando-se de carcaças no deserto. E sabe por que os jovens não conseguem mais mudar o mundo? — perguntou Chico.
— Eles não tentam. — respondeu Adriano, arrancando um sorriso largo do homem.
— Exatamente, rapaz. O mundo pertence a vocês para moldá-lo. E você, menino, é um artesão, e dos bons.
Voltamos para casa felizes.
Adriano fazia planos e mais planos e me agradecia por ter arranjado o encontro.
Ao chegarmos, ele correu para dentro, para contar para os amigos sobre o acontecido e eu fiquei para trás para pegar a correspondência e regar as plantas.
Enquanto passava os olhos nas contas que chegaram, as nuvens encobriram o sol e um vento gelado soprou. "Bom, não vou precisar molhar as plantas." Pensei, encarando as nuvens tempestuosas trazidas pelo vento.
Me virei para correr para dentro, mas havia alguém no meu caminho.
Paralisada, pude ouvir as batidas de meu coração acelerando, enquanto amassava os envelopes contra o peito.
Ele se avolumava e sorria para mim, como se tivéssemos nos visto ainda ontem, olhos verdes e lupinos no rosto intocado pelo tempo.
— Há quanto tempo, Sol. — Ouvi-lo me chamar pelo o apelido carinhoso virou meu mundo de cabeça para baixo.
A voz ainda possuía o mesmo timbre hipnótico capaz de sobrepujar qualquer outro som à sua volta. Porém eu já não era mais uma menina idiota. Eu era uma mulher que, por muito tempo, manteve uma centelha de esperança no coração partido, mas aprendeu que não precisava que ele voltasse, pois sozinha podia fazer tudo o que sonhara fazer com ele ao seu lado.
— O que você quer? — Esforçava-me para controlar o tremor. Quis atirar os papéis na cara dele, mas de que adiantaria?
— Ver meu filho.
Por alguns segundos, me esqueci de respirar, os papéis em minhas mãos iam ficando cada vez mais amassados. Quis correr, mas como sempre, sua presença me paralisava. "Como ele sabe?" pensei.
— Eu sei de muitas coisas. — Era possível que pudesse ouvir meus pensamentos também? — Tenho muitos amigos espalhados por aí.
Não!
Não o deixaria entrar novamente em minha vida. Não depois de me iludir daquele jeito e me deixar sozinha e grávida. Por sua causa tive o nome e a reputação manchados, fui chamada de vagabunda e coisas piores pela minha própria família, e se não fosse pela generosidade de estranhos, eu não queria nem pensar no que poderia ter acontecido a mim e ao meu filho.
Porém, desde o nascimento de Adriano, nada mais me assustava, nem mesmo seus olhos predadores
— Você sabia do Adriano? — Endireitei o corpo e firmei a voz, a raiva aquecia meu peito. — Se sabia, por que não me procurou? Por acaso sabe o que passei, grávida e sozinha?
— Sei, claro que sei. Por isso estou aqui. — Minhas palavras não o tinham afetado, continuava com a mesma expressão calma de sempre e eu o odiei ainda mais.
— Não. Você não vai chegar perto dele. Ele é meu filho. MEU. — As lágrimas inundavam minha visão. — Dezesseis anos, dezesseis! Eu criei ele sozinha, eu o alimentei e cuidei, eu passei noites acordadas, eu dei um nome a ele. Eu. Ele é meu filho.
— Nosso, e você sabe disso. — Ele se aproximou e me segurou os ombros com leveza. — Eu estive por perto o tempo todo, Sol. De onde você acha que veio a sua sorte, a generosidade de pessoas que mal a conheciam? Jamais deixaria meu filho e sua mãe desamparados. Eu a honro por tudo que fez pelo nosso menino, e prometo que seu sofrimento não terá sido em vão, se me deixar entrar e conhecê-lo.
Maldito!
Devia ser muito fácil convencer as pessoas com aquela voz macia e olhar intenso. Meu coração vacilou por uns momentos.
— Se você sabia, por que mandar outros, porque você não?
— Seus caminhos estavam fechados para mim, cheguei a pensar que até me esqueceria.
— Eu tentei. Muito! Mas ele se parece tanto com você. — E lá estava novamente meu coração, aberto com um livro de romance idiota. — O que vai dizer para ele?
— Não estou aqui para tirá-lo de você. Não se preocupe
Com um toque suave, secou as lágrimas do meu rosto, trazendo de volta as lembranças de todos os momentos bons. De como ele me fazia sentir coisas as quais pensava existir apenas nas páginas dos livros. De suas carícias suaves e seus beijos arrebatadores. De forma como ouvia minhas palavras e se interessava por elas e de como me fazia sentir vista, importante. Se houvera de me perder, só poderia ser por ele.
E afinal, Adriano tinha o direito de conhecer o pai, não tinha?
Pedi para me acompanhar, mas sentia ser ele quem realmente guiava o caminho.
A porta do quarto estava entreaberta. Empurrei-a com cautela, ainda insegura da decisão que acabara de tomar, contudo o havia convidado para dentro de minha casa e não podia voltar atrás.
Ao se colocar no umbral da porta, sua sombra cresceu sobre meu menino, e quando Adriano se virou, foi como ver o passado e o futuro se encarando.
Lá fora, uma tempestade começou a cair.
O Terceiro Sinal
"E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta (...)
E o dragão deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e grande poderio."
Apocalipse 13:1,2
Do quarto do hotel, Solange encarava o mar.
Lembrando-se dos pesadelos que lhe atormentavam durante a gravidez, sentiu um leve arrepio subir-lhe a espinha.
Se a tivessem dito, há dez anos atrás, que estaria ali, em um hotel luxuoso, a um oceano de distância de casa, não acreditaria. Tudo ainda parecia um sonho, e mesmo sabendo o quanto seu filho era merecedor de suas glórias, ainda não conseguia acreditar no rumo que sua vida tinha tomado.
Na noite anterior, Adriano retirou-se cedo para descansar. Haveria uma grande reunião antes da cerimônia de posse e ele havia feito muito mistério sobre isso. Nunca lhe escondera nada, entretanto dessa vez, preferiu não lhe revelar a natureza do compromisso.
Estava orgulhosa, é claro, mas a partir daquele dia, teria de dividi-lo com o mundo.
"O mais jovem secretário-geral das Nações Unidas" pensava ela, com orgulho.
Todos sabiam ser uma escolha ousada, a qual desafiava os protocolos, porém o mundo estava mudando cada vez mais rápido, e não era para melhor. Somente uma mão firme, mas com gentileza o suficiente, seria capaz de unir figuras, países, e governos tão diferentes em prol de um bem maior. E ele fora, sim, uma surpresa, algo nada tradicional, no entanto tempos difíceis exigiam movimentos audazes.
Homens tão importantes sempre eram vistos tal qual entidades independentes de qualquer coisa. Como se sempre tivessem existido no tempo e espaço sem nenhuma interferência. Adriano sempre se esforçou para mostrar a humanidade das figuras políticas proeminentes. Para tais fins, levava a mãe consigo para todos os lugares. A presença materna, ao contrário do que muitos tentaram fazê-lo crer, não lhe conferia a imagem de filhinho da mamãe, e sim de um homem amoroso, grato por todos os sacrifícios feitos por ela. Ele contava, orgulhoso, sobre como ela o havia criado sozinha e onde sua dedicação e amor o haviam levado.
Humanidade!
Para ele, a maior vantagem e a maior fraqueza dos grandes líderes.
Embora estivesse presente, o pai nunca era mencionado nos discursos. Por escolha própria permanecia nas trevas de onde o aconselhava e orientava. Isso trazia um certo alívio a Solange.
Imaginou que o menino (sim, mesmo aos 36 anos, para ela, ainda era um menino aos seus olhos) deveria estar acordando agora e se preparando para o café antes de tal reunião. Sentiu uma vontade avassaladora de vê-lo, pois quando o cargo lhe fosse oficialmente passado, o perderia mais um pouco.
Atravessou o corredor com passos curtos em direção aos aposentos do filho.
Parou na porta como se uma barreira invisível a impedisse de entrar. Percebeu a mão suada ao tocar a maçaneta.
Ouviu a voz de Chico, porém isso já era esperado, pois o homem viajava com eles, como o mentor de Adriano, cada vez mais reverenciado pelas pessoas por conta de seu carisma e sabedoria. Um profeta dos novos tempos, responsável por fazer o mundo se apaixonar por aquele jovem.
Havia uma terceira voz.
Profunda e serena, e ao ouví-la, Solange não teve certeza se conseguiria, ou queria, entrar. Não sabia quando ele começou a assustá-la tanto.
Ou talvez tivesse apenas medo dos próprios sentimentos?
Mas era seu filho ali, e não deixaria ninguém lhe privar dos momentos que estavam prestes a se tornar cada vez mais raros.
Bateu de leve na porta e ouviu a voz de Chico:
— Pode entrar.
Seu filho estava sentado encarando uma grande quantidade de papéis sobre uma grande mesa, de costas para a porta. Do outro lado, curvado sobre os documentos, Chico apontava alguma coisa importante. E, ao lado do jovem, com a mão em seu ombro, estava ele, ereto e calado. Foi o primeiro a voltar o rosto para Solange, fazendo-a sentir-se pequena sob seus olhos.
Ele apenas sorriu e apertou o ombro de Adriano.
— Ah, mãe. — disse levantando-se para abraçá-la. — Desculpa, achei que era o serviço de quarto. Pensei que estava dormindo ainda.
— Tudo bem. Vim ver se estava tudo bem antes de você ir pra reunião.
— Vem ver, tô revisando meu discurso de posse. Era pra ser surpresa, mas você estragou tudo. — Brincou, puxando-a pela mão. A fez sentar e pediu que lesse o texto.
Com cuidado, Chico juntou as páginas para ela.
Enquanto lia o discurso, viu seu nome e a palavra mãe repetida várias vezes. Emocionou-se com as palavras do filho e o viu ali, refletido no sonho de mudar o mundo. Não conseguiu se segurar, e deixou as lágrimas escorrerem.
Uma mão apertou seu ombro, e a voz já conhecida lhe falou:
— Eu disse que valeria a pena, Sol. — A mulher apertou os dedos dele com carinho sem desviar os olhos do papel.
E ali, cercada por aqueles três grandes homens, Solange sentiu o orgulho inflamar cada célula de seu corpo. Corpo capaz de dar vida à incrível criatura que seguraria o mundo na palma da mão.
Comments